PARA CHEGAR AO OUTRO LADO É PRECISO DAR O PRIMEIRO PASSO

Olhei meu celular enquanto subia a segunda escada rolante do metrô Vila Prudente. Sexta-feira, 20h55, voltando do trabalho, chovendo! Laptop, cadernos, livros, garrafa de água, job para terminar no fim de semana, tudo na mochila e uma baita dor nas costas. Só queria voltar para casa, tomar um banho e comer algo. Parei na parte coberta e fiquei pensando na longa jornada que seria chegar até em casa. Em pensamento xinguei o mundo pois sabia que tinha esquecido o guarda-chuva.

O plano inicial era sair do trabalho às 17h00 e chegar ao mestrado por volta das 19h00, mas não foi isso que aconteceu. Quando desejei bom fim de semana ao pessoal da agência já eram 20h00. Fiz uma conta rápida. Do bairro do Ipiranga até o fim da Avenida Interlagos, onde faço mestrado, daria mais ou menos uma hora e meia. Chegaria lá por volta das 21h40, sendo que as aulas acabam as 22h00. Enfim. Não vou!

Esperou demais, Maruo. Você não é de açúcar pra derreter. Suporte a dor nas costas e encare logo essa chuva! Coloquei o fone de ouvido, dei play no podcast e comecei a jornada. Um minuto e quatro segundos depois a bateria do meu celular acaba. Minha jornada será muito mais difícil sem podcast. Mais uma vez xingo o mundo.

Vinte minutos depois estou próximo à igreja São José, quase chegando ao meu destino. Só mais uns dez minutinhos para chegar. A avenida Zelina está super movimentada, muitos carros tentando chegar em casa e uma meia dúzia de pessoas descendo do ônibus. Lá na frente, perto da farmácia, avisto um outro ser corajoso. Uma outra pessoa sem guarda-chuva que também brigou com o mundo e disse dane-se! Eu vou chegar em casa de qualquer jeito!

Continuei caminhando com muito mais ânimo sabendo que mais alguém entendia o que eu estava passando. Queria chegar perto e acenar como quem diz “tamo junto, meu amigo!”

Para chegar ao outro lado é preciso dar o primeiro passo. Para dar o primeiro passo é preciso entender o que tem do outro lado.

Fui me aproximando e percebi que ele olhava atentamente para dentro da farmácia, logo depois atravessava a rua agitado, parava um pouco, olhava as mãos e voltava a contemplar o interior da farmácia. Ele fez isso umas três vezes até eu chegar perto. Nesse momento já não existia mais o pensamento “tamo junto”. E se ele fosse assaltar alguém? E se ele só estava esperando alguém sair da farmácia? Sinceramente eu estava cansado, com fome e todo molhado. Achei melhor deixar pra lá e não interferir.

“MOÇO! MOÇO! O SENHOR PODE ME AJUDAR? NÃO VOU TE ASSALTAR NÃO!”

Foi o que ele gritou quando começou a correr na minha direção com as duas mãos fechadas. Em meio à chuva só fui perceber que ele estava descalço e não tinha os quatro dentes da frente naquele momento. “Cara, desculpa. Não vou poder te ajudar não”.

MOÇO, POR FAVOR. ME AJUDA. MINHA FILHA PRECISA DE FRALDAS.

Vou ser sincero. Não é fácil assimilar o contexto quando o sentimento vigente é o medo. “Cara, desculpa. Não posso te ajudar. Desculpa”. A única coisa que eu queria era sair de lá. Andei o mais rápido possível até chegar na esquina, olhei para trás e o vi com a cabeça baixa, olhando novamente para as mãos.

Ainda não sou pai e nem sei como é ser. Além disso, podia ser só uma desculpa como tantas outras para pedir esmola. Sei lá… Da esquina consegui ver o que ele fazia quando atravessava a rua. Ele arrumava um carrinho de supermercado cheio de papelão e latinhas de alumínio para não pegar chuva. Colocava a mão em um saco plástico e tirava um monte de papel, ficava contando. – “Moço. Me ajuda. Minha filha precisa de fraldas” – Por que essa frase não sai da minha cabeça? Era só eu virar a esquina e chegar em casa.

A chuva apertou e me vi imóvel na esquina, olhando e pensando na frase… e na fralda. Respirei fundo, limpei o óculos e fui falar com ele.

“Você quer que eu compre a fralda para sua filha?”

Pensei em colocar um monte de dados estatísticos, neste artigo, falando o quanto é triste o nosso IDH, mas não farei isso. A reposta que aquele senhor me deu acertou em cheio minha parte mais angustiante.

“Eu tenho o dinheiro, filho. É que eles não me deixam entrar na farmácia.”

“Não entendi. O senhor pode repetir?”

“Eu já entrei pra comprar fraldas, mas eles não me deixam entrar mais. A Fralda é M. A Fralda é M.”

Ele abriu as mãos e me mostrou dezesseis reais. Estendeu os braços e me ofereceu todo dinheiro para que eu entrasse na farmácia e comprasse a fralda para a sua filha. Não era mais chuva, eram lágrimas no meu rosto. Entrei na farmácia chorando, fui até a sessão de fraldas e percebi porque ele ficava constantemente olhando para dentro. Todas as fraldas estavam em promoção e faltava quatro reais para ele completar o valor e levar a mais barata. QUATRO REAIS! Será que foi pelo valor que a farmácia não o deixou entrar ou foi outra coisa como desprezo e preconceito?

Comprei a fralda (tamanho M) e levei para ele. Fiz questão de amarrar bem a sacola para não molhar. Entreguei e disse “muito obrigado”. Ele me estendeu a mão com o dinheiro e disse: “Toma. É para o senhor. O senhor merece!”

Não, cara. Eu não mereço nada. Comecei essa pequena jornada toda xingando o mundo porque EU havia esquecido o MEU guarda-chuva. Depois xinguei mais ainda, porque a bateria do meu celular acabou. E por fim quis pertencimento e um vergonhoso “tamo junto” porque achei que estava sofrendo sozinho voltando pra casa na chuva.

Não, cara. Você, sua esposa e sua filha é que não merecem uma vida assim. Eu fico com a dolorosa frustração de ter tido a condição de estudar, de saber como o sistema funciona, de ter o privilégio de entrar em uma farmácia e não ser expulso, e ainda assim passar a maior parte do meu tempo olhando para um único lado dessa realidade, e ainda por cima reclamando dela.

Sei que não dá para pular etapas e que um passo vem depois do outro. Sei também que se algo semelhante acontecer amanhã minha primeira reação será o medo e a vontade de fugir. E provavelmente direi mais uma vez: “Desculpa, amigo. Não posso te ajudar”. Sei que tem um lado melhor. Tem que existir um lado melhor. Ainda não encontrei o meu. Não cheguei nem a dar meu primeiro passo.

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RICARDO MARUO

Consultor de planejamento estratégico digital. Atua a mais de 20 anos no mercado digital, principalmente nas áreas de inovação, data science e novos negócios. Palestrante profissional, professor na PUC-SP, especialista em psicologia comportamental e criador do projeto Mulheres Digitais.

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