TER JUÍZO PRESERVA OS DENTES
Já diziam as nossas avós: quem tem juízo preserva os dentes. E não apenas eles… Preserva bem mais, preserva o começo, o fim e o meio de uma civilização que adora fazer juízo de valores em nome de um juízo final que, pelo que o noticiário nos mostra, está cada dia mais próximo da tragédia final anunciada.
E, se quem diziam eram elas, alguma coisa tem aí de muito significativo. Afinal, são elas, as mulheres de ontem, de antes de ontem e de desde muitos séculos atrás que, historicamente, sempre se dedicaram à gestão da vida familiar, paralelamente à forma de interação com o meio ambiente em que sobreviviam com poucos ou quase nenhum direito.
Eram estas mulheres que logo percebiam quando um curso d´água ameaçava mudar sua rota e impedir a lavagem das roupas. Eram elas que pela agricultura primitiva alimentavam seus filhos e toda a comunidade. Elas vigiaram o céu em busca do melhor momento para limpar seus lares. Acompanharam a lua para assegurar a hora certa da pesca farta. E observaram o solo atentamente para modelar dele os utensílios para o preparo dos peixes provenientes desta pesca. Fiaram e teceram horas de conversas entre si para fazer jus às baixas temperaturas e agasalhar seus entes. Foram elas que entenderam rapidamente a importância dos bons ares e a cura pela infusão daquilo que se cultiva e extrai da terra.
A mãe terra não foi assim chamada levianamente.
E tão bem as mulheres fizeram isso que, muitas delas, arderam em fogueiras cujas lenhas provinham de árvores e arbustos que só deveriam promover a vida, jamais a morte. Para nem lembrar que o fogo ateado também veio da mão cujo anel episcopal deveria ter a mesma preocupação vital.
Elas cunharam o velho ditado talvez por terem sentido na pele queimando, como poucos homens sentiram, a prejuízo da falta do juízo, tanto daquele que promove a justiça e assegura os direitos quanto daquele que é precaução e preservação da vida.
A Eco-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992, por exemplo, já discutia ações que pudessem melhorar o nível de educação da mulher e sua participação em condição de igualdade ao desenvolvimento e à gestão ambiental.
Não à toa, há 30 anos esta mobilização já compreendia a necessidade das relações de gênero e do respeito à sua diversidade serem definitivamente incorporadas nas agendas ambientalistas nacionais e internacionais, tanto quanto a mobilização das sociedades indígenas e quilombolas e das populações tradicionais das florestas brasileiras.
A Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável em 2002, realizada em Joanesburgo, terra de Nelson Mandela, embora absurdamente descredibilizada pelos países ditos “desenvolvidos”, já lembrava que o combate ao racismo é força motriz para o desenvolvimento sustentável. Os muitos corpos negros e pobres que se amontoam sem vida, sem que sejam sentidos e compreendidos como uma afronta, explicita que não há meio ambiente enquanto houver meias verdades sobrepujando a luta pela igualdade social e econômica de todos, sem distinção.
Não há preservação do meio ambiente quando sua exploração é fachada para perpetuar uma pirâmide socioeconômica que, só por sua forma, já deveria deixar claro aos mais desavisados que seu objetivo é potencializar as desigualdades. Dar pesos e medidas diversos para aqueles que ela entende serem diferentes.
Não há fim para as mudanças climáticas extremas enquanto houver a exploração do homem pelo homem. E aqui cabe perfeitamente a grafia prosaica e patriarcal… Pois ela é, por si só, um dos grandes fatores perpetuadores dos preconceitos e da hipocrisia que hoje vemos claramente e que precipitam, as atuais e futuras gerações, a um mundo insustentável, tanto do ponto de vista ambiental quanto socioeconômico.
Hoje, já em desespero, percebemos claramente o quanto a preservação do meio ambiente passa pela luta das mulheres, do movimento LGBTQIAP+, pela valorização dos povos indígenas, pela igualdade racial e de todas as minorias que possuem um papel social importante para a derrocada do status quo vigente.
Não haverá meio sem o fim do lucro pelo lucro, não haverá meio sem o início da organização do conhecimento tradicional dos recursos naturais e do respeito ao outro, pois só este saber que nasce do sofrimento de ser a base desta pirâmide desigual tem a força necessária para a implementação do desenvolvimento sustentável que urge.
Enquanto o topo dominante do mundo não criar juízo e parar de abocanhar o que poderia ser de todos, estaremos todos sem dentes.
Autor:
Rachel Crescenti é jornalista formada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e possui especialização em Comunicação em Políticas Públicas Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trabalha com Comunicação Pública e Marketing Político e de Campanhas Eleitorais desde 2006.
Na imagem que ilustra este texto, uma homenagem a algumas das muitas mulheres que lutaram, cada uma ao seu tempo, pela igualdade social: Angela Davis, Antonieta de Barros, Joana D’Arc, Sonia Guajajara Maria Felipa e Simone de Beauvoir.
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