Ao receber das mãos de seu pai um par de asas, Ícaro recebeu também um aviso determinante sobre viver e morrer. Como as penas das asas eram coladas uma a uma com cera de abelha, o pai foi categórico no conselho. Disse para não voar tão perto do sol, pois o calor derreteria a cera, e nem próximo demais ao oceano, porque as asas molhariam e ele morreria afogado.
E o que fez o jovem Ícaro? Foi ao limite. Não ao limite do baixo, porque para voar baixo só é preciso bater pouco as asas, só o suficiente mesmo para se manter no mesmo lugar. Atraído pelo brilho do sol, ele voou até o fim. Há quem diga que o jovem Ícaro foi arrogante, prepotente ao almejar o mais alto voo, mas há também a leitura de que ele foi corajoso, arriscou, foi em busca do seu sonho de voar até o limite, mesmo que o voo mais audaz resultasse naquele fracasso dos que arriscam tudo, só pelo prazer de “ir por onde ninguém for”.
Como nas muitas lendas gregas, a que fala sobre o sonho de Ícaro de voar era contada aos jovens pelos seus pais para demonstrar a importância da humildade após uma conquista e também para que seguissem seus aconselhamentos. É o que muitos pais fazem (nem todos): preparam, contribuem para o amadurecimento dos filhos, ajudam na construção das asas, mas no momento de decolar, em voo solo, o filho segue, ou para o sol, se desprendendo dos conselhos que adiantam a queda, ou voa tão baixo que não consegue se libertar dos cuidados paternos, fica uma vida inteira embaixo de suas asas. E há aqueles filhos que preferem voar entre o céu o mar, com a segurança que requer um voo bem-sucedido.
“Voar, voar, subir, subir”. O pai de Ícaro assistiu a tudo, do prazer efêmero do filho até seu fim trágico, mas sabia que, naquele momento, tinha cumprido sua parte na relação pai/filho. Não havia mais nada a fazer. Não se trata de dizer qual é a função ou o papel do pai. Se concentrar nisso é reduzir uma construção que não cessa nunca. Não há função definida quando se vira pai, é como se o instinto de dar o conselho, de caminhar junto nas conquistas nascessem e fossem crescendo junto com a cria. Nem dá para simplesmente definir o que é ser pai. Principalmente quando não se é pai, se é mãe, e há muitas diferenças entre ser a terra e ser a semente. É desse combinado de diferenças que eclode o broto/filho que um dia virará pássaro, que um outro dia virará também o colo, o conselho para, enfim, ajudar a concretizar o voo de outro pássaro. O círculo vicioso da relação pai/ filho consiste em ser pássaro e ser solo, em ser solo e ser pássaro…
Que pai dirá que não cria e acompanha a caminhada do filho para que ele voe? Este é um dos prazeres paternos desprendido de qualquer apego, de qualquer amarra: é o prazer que se tem no voo, na liberdade que se ajuda a construir para o outro. É o que pode-se listar entre as muitas configurações em que o amor se constitui: dar asas à liberdade.
E quanto ao voo suicida de Ícaro, quem o condenará? O sonho era voar ao máximo grau de calor, lá onde a cera derrete, mas também onde se chega onde nunca ninguém jamais foi. “Ir até que um dia chegue enfim/ Em que o sol derreta a cera até o fim”. E quem não deu vários voos e teve também as asas desses sonhos derretidas pelos sóis encontrados nas inúmeras decolagens no céu da vida? Também se morre um pouco ao ver sonhos derretidos, a diferença é que o voo de Ícaro foi único, derradeiro. Sonho realizado, ele morreu de uma vez. Mas há também mortes que podem durar um vida inteira. Voos rasantes, voos incertos, voos altos, “asas de ilusão”, num “sonho audaz feito um balão”.
(Todas as aspas contidas neste texto são da música “Sonho de Ícaro”, consagrada na voz do cantor Biafra)