AFRODITE PERDEU O RUMO

Nos anos em que os presos políticos da ditadura militar começaram a deixar o cárcere, no final dos anos 70 e início dos 80, tínhamos, eu e uma trupe de jovens “libertários” da periferia, um jornal editado mensalmente chamado “Afrodite Perdeu o Rumo”. Era o que na época chamavam de fanzine, uma espécie de blog analógico feito com os parcos recursos que existiam: xerox, stesil (palavra que nem mais existe) e uma diagramação pra lá de primária.

Os temas eram absolutamente vanguardistas para a época e extremamente atuais para os dias de hoje. Falávamos de política, cultura, racismo, questão indígena, homossexualidade, mulher e fundamentalmente como combater o autoritarismo e avançar numa pauta que incluísse aqueles que sempre estiveram à margem da sociedade. Tinha um caráter libertário, mas pela pluralidade dos participantes nunca se definiu como tal.

Éramos apenas jovens que acreditavam que o totalitarismo jamais teria outra chance depois da abertura democrática que encerrou o lamentável episódio da ditadura militar. Queríamos ampliar a liberdade, o que significava ampliar a pauta da geração imediatamente anterior a nossa, que lutou contra a opressão, foi presa e torturada.

Era difícil até. Porque os militantes de esquerda nos chamavam de “porra louca” e os mais conservadores ficavam escandalizados.

Depois de muito tempo e com o advento da Internet, tentei procurar qualquer reminiscência daquele imperiódico na rede. Será que alguém daquela trupe, por qualquer motivo, colocou o jornal na rede para aplacar seu saudosismo de juventude?

Minha surpresa foi encontrar referências bibliográficas do Afrodite no Arquivo Geral Cidade do Rio de Janeiro, no catálogo de Imprensa Alternativa, e na Universidade de Miami, Special Collections e perceber que de alguma forma aquele fanzine sobreviveu ao tempo.

No resumo do que era a publicação, a Universidade de Miami descreve da seguinte maneira: “Afrodite Perdeu o Rumo: Revista, off-set, grampeada, com vinte e oito páginas, sem registro de local nem data. Entre os colaboradores constam: Januário Solimões (meu pseudônimo na época), Walter Mazr, Richard, Inês, Cássio. Contém contos, poesia, ilustrações, artigos sobre feminismo e mulher negra. Revista literária e cultural de tendência anarquista”.

Na apresentação do Catálogo da Imprensa Alternativa, do Arquivo Geral do Rio,  explica-se que “embora grande parte da coleção seja fortemente literária, há uma grande variedade de outros tópicos, os predominantes sendo ecologia e ambientalismo, política, música, cinema, anarquismo, direitos das mulheres, racismo e preocupações LGBTQ”.

Segundo o próprio Arquivo Geral, para compor esse Catálogo foram reunidas publicações “que contestavam diretamente o regime de exceção imposto a partir de 1964 e os que constituíam veículos de movimentos e correntes de esquerda, também os que não possuíam meios de comunicação de massa, que pensavam de forma independente, que não estavam ligados a esquemas governamentais ou econômicos e que não aceitavam o autoritarismo dominante não só na política, mas nos costumes, no comportamento, na linguagem, nos valores, propondo novos conteúdos e uma diagramação arrojada para época”.

Foi muito interessante encontrar as referências do Afrodite, mas foi muito triste verificar que avançamos tão pouco nos temas que debatíamos há mais de 40 anos. Mudou pouco, mesmo porque a história é feita de avanços e recuos, um passo pra frente e, às vezes, dois pra trás. É onde nos encontramos hoje.

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EMILIO ALONSO

Jornalista e diretor da Área. Cursou a Escola Politécnica da USP, mas percebeu a tempo que gostava mesmo de comunicação. Formou-se em jornalismo pela Cásper Líbero e acabou tornando-se publicitário.

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