ÓDIO NOSSO DE CADA DIA, O QUE NOS DÁ HOJE?

Quanto de ódio, raiva, desprezo, ira, discriminação, intolerância e repulsa há na sociedade brasileira? Aparentemente há muito de tudo isso entre todos nós e há muito tempo.

Ou alguém realmente acha que quando um senhor de escravos empunhava uma chibata estava, ele próprio, apenas sendo vítima do pensamento retrógrado de uma época? Não! Havia tanta força naquele braço quanto desprezo pela vida alheia.

Acreditamos mesmo que quando um homem estupra, subjuga e mata uma mulher, está apenas colocando seu instinto e superioridade física à disposição de sua volúpia sexual e do sentimento de possessividade que a sociedade o ensinou a ter desde criança? Não! É pura raiva que, de forma eufemística, chamamos de machismo.

Será que ainda cabe crer que, quando pessoas consultam a internet para aprender e dividir experiências sobre como torturar e matar outras, estão agindo isoladamente e movidas pela curiosidade? Claro que não. Estão usando a modernidade para se articular e dar vazão à ira sociopata que lhes é comum.

O ódio permeia a humanidade desde que o mundo é mundo. Reside no mistério da alma humana. É um enigma tão grande que nem a própria Bíblia soube explicar de forma satisfatória. Caim, por inveja, odiou Abel a ponto de matá-lo. Podia ter apenas cortado relações. Ter ignorado o irmão. Quem sabe até mesmo ter roubado o objeto de sua inveja e contido o ódio que lhe motivava. Mas não. Caim quis matar Abel e o fez sem dó. E nem o relato bíblico deu cabo de explicar melhor a motivação torpe do crime e sua hedioneidade.

No Brasil ódio e raiva são sentimentos históricos. Bandeirantes não se satisfizeram em apenas aprisionar guerreiros índios derrotados, achavam por bem dizimar tribos inteiras, abusando de mulheres e degolando crianças. Escravocratas não se contentaram em açoitar escravos, tinham por hábito jogar sal nas feridas e negar água e cuidado por dias para quem estivesse atado ao tronco. Senhorinhas, enciumadas e temerosas em perder seus noivos e maridos para a lascívia permitida com as escravas, mandavam marcar a ferro o rosto das negras que julgavam mais bonitas. Não deram a Tiradentes nem um julgamento injusto. O deixaram de pé ouvindo uma sentença que durou 18 horas até ser enforcado e ter seus membros esquartejados. Cortaram a cabeça de Lampião e achataram seu crânio com coronhadas de fuzil. Degolaram Maria Bonita ainda viva. Como se não bastasse, salgaram as cabeças, mergulharam em aguardente e promoveram uma verdadeira exposição itinerante das mesmas por anos em várias cidades nordestinas. A Era Vargas não se importou em entregar à Gestapo nazista uma alemã judia grávida. Durante a Ditadura Militar presos políticos não eram apenas presos, tinham as unhas arrancadas, recebiam choques nas genitálias, baratas eram inseridas dentro de seus corpos e, pendurados em paus de arara, mangueiras com jatos d`água eram colocadas em suas gargantas.

E nós, brasileiros, aceitamos aprender a sempre ler o resumo destas histórias, romantizar heróis cujas mãos estão sujas de sangue e demonizar personagens que sequer nos demos ao trabalho de conhecer e entender. Unificamos a grafia da palavra história e esquecemos das muitas estórias de terror que a história contem.

E, com isso, a sociedade contemporânea decidiu, não apenas assumir a raiva e o ódio como algo culturalmente aceitável, como até mesmo discursar sem pudor sobre seus mais vis sentimentos. Vivemos em uma sociedade contaminada ideológica, social e politicamente e temos nos permitido viver assim, perplexos, mas sem ações efetivas que nos tirem desta situação caótica.

As redes sociais têm sido o grande porta-voz destes discursos e, é nela, que uma legião de odiadores profissionais e amadores se encontram, se apoiam e se organizam. Os meios de comunicação colaboram, difundindo esse sentimento seja no noticiário ou nas obras de ficção. Vivemos imbuídos de um maniqueísmo avassalador que amargura uma pequena parte de nossa sociedade e nutre a maior.

Mas, se o ódio está enraizado em nossa condição humana, também está claro que somos, por natureza, seres contraditórios. Somos compostos de ódio e também de amor. E é a escolha que fazemos que norteia nossas vidas individuais e constrói nossa existência coletiva. É só aquilo que alimentamos que se desenvolve em nós.

Bertrand Russel já dizia que o coração humano modelado pela civilização moderna está mais inclinado para o ódio do que pra a fraternidade. Portanto, urge remodelar este coração, desconstruir o volume de raiva e de ódio e substituí-lo por mais amor. Ainda que saibamos que o ódio sempre nos acompanhará, sinistramente, brigando dentre de nós para estabelecer sua obra nefasta.

E, se preciso for, até mesmo subverter a ordem bíblica deixada por Levítico e Mateus. Se não der para amar ao próximo, parar de alimentar nosso ódio pelo inimigo já estará de bom tamanho.

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RACHEL CRESCENTI

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