Não é fácil nascer do lado de baixo da linha do Equador. Tampouco é simples ser latino. É como ter as veias sempre abertas, pulsando freneticamente ao ar livre. Na metade das vezes em absoluto descompasso e na outra metade desproporcionalmente. Somos hiperventilados. Turbilhões passionais, barulhentos. Gente de falas altas e sentimentos maximizados.

É bem verdade que o frenesi latino cai melhor com sotaque castelhano. Mas nós, brasileiros, dentro de nossa comedida e complexa língua portuguesa nos comportamos igualmente. Com menor charme e virilidade, talvez, mas com igual desvario emocional.

No coração latino dos brasileiros há igual dose de amor e ódio. Basta olhar nossa recente campanha eleitoral, um exemplo clássico da ambiguidade do ser humano. Ficou claro que, em cada um de nós, habitava igualmente luz e trevas, o bem e o mal, o que nos unia e o que nos dividia. O simbólico e o diabólico. A demência e a sapiência igualmente medida em cada frasco de insatisfação que nos tornamos todos ao longo de nossas vidas desinteressantes.

Não. Ser assim não é propriamente um defeito de fabricação, seleção ou criação, como preferirem. É uma característica padrão da condição humana. Já, saber equilibrar estas duas forças interiores é o que poderíamos entender como a primazia daqueles que são exceção.

Nos últimos anos o mundo tem conhecido uma onda de ódio sem precedentes. Particularmente no Brasil isso se evidenciou durante o pleito eleitoral para presidente. Toda sorte de injúrias, calúnias, palavras de baixo calão e até violência física expressaram esse sentimento. As chamadas fake news, uma palavra engraçadinha para mentira deslavada e irresponsável, foram talvez o símbolo maior deste destempero coletivo. Perdemos a linha.

Quem seguiu as redes sociais, se deu conta dos níveis baixíssimos de polidez, de desrespeito mútuo e até de falta de sentido democrático na convivência com as diferenças. Da dualidade que temos em nós, permitimos apenas que a pior parte se mostrasse. Mas por quê?

Exemplos históricos de manifestação sociais de ódio contêm sempre um componente em comum: inveja.

Num mundo onde as liberdades individuais tentam os homens, prestígio, bem-estar, privilégios e superioridade de fato o seduzem. Mas, como nem sempre é possível ter aquilo que se almeja, acumula-se entre os competidores do sistema liberal um grande reservatório de ressentimento e avareza.

A inveja enreda os candidatos ao paraíso social e os impele a travar pequenas guerras. Aos que ganham, as batatas. Aos que perdem, a mágoa. Interessantemente não contra os vencedores, mas contra as regras do jogo. Pois é… Aquela célebre frase de para-choque de caminhão faz sentido. A inveja é mesmo o termo chulo para a secreção: uma merda.

Para entender melhor este sentimento que alavanca o ódio, basta rever alguns momentos da história contemporânea. Analisando de perto as grandes revoluções, percebemos que os setores sociais são basicamente movidos pela inveja. Na Revolução Francesa, este pecado capital gerou o ódio e foi motor de combustão menos para mudança e mais para contenção.

E como todo motor necessita de algo que lhe forneça energia, é aqui que, historicamente, surge a união entre o invejoso e o objeto da inveja. É neste momento que o ódio toma corpo e este imenso contingente serve como bucha de canhão. A parte triste é que o resultado desta explosão é apenas reação que não alcança transformação.

Hitler e outros personagens fascistas, de Mussolini a Pinochet passando por Franco e Salazar, tinham todos algo em comum. Eram seres inadaptados socialmente, gente que, cada um em seu tempo, acreditava que mereciam mais do que tinham. E o que de fato tinham era apenas o próprio sentimento de fracasso diante da modernização das relações socioeconômicas que eram incapazes de compreender.

O problema é que, quando o  ressentimento se instala, perde-se a capacidade de pensar de forma complexa. Correlacionando fatos, analisando causas e consequências e vivenciando a empatia.

É bem claro na história do mundo que a inveja alimenta o ódio social. E este, por sua vez, impede o ser humano de se posicionar de outra forma que não pela explicitação desse ódio. Afinal, conter o ódio interno cansa. Machuca por dentro. A explosão fascista é, portanto, a uma libertação da dor.

Só que já sabemos demais sobre a história para continuar acreditando que o fascismo é um movimento político. O rescaldo da 2ª Guerra Mundial nos mostrou o que realmente ele é: algo completamente social e moral. Ele existe mesmo sem partido político, disseminado entre o xenofobismo, o racismo, o machismo, a misoginia, a homofobia e o burocratismo. Nasce da inveja e ressentimento e se expande pela intolerância e pela raiva. Cresceu lentamente nas décadas passadas e acelerou-se nos dias atuais com as redes sociais.

No Brasil, mostrou sua cara feia nas últimas eleições. Diluiu um sentimento que, nem mesmo nós, latinos passionais, gostamos de ver. O ódio expresso na internet brasileira mostrou seu caráter social e heterogêneo e voltou-se contra o governo vigente. Mas deixou claro que ele pode se revelar contra todo e qualquer outro governo. Fruto que é do cruzamento da mágoa com a ganância.

A verbalização de ódio, portanto, nada mais é que o esperneio do ressentimento. De ser perdedor em uma sociedade que promete um lugar ao sol para todos e não cumpre. Uma tentativa de rebeldia inútil que serve mais para acalmar as próprias insatisfações pessoais que propriamente para fazer a revolução e mudar o status quo.

Civilizar este ódio passa, necessariamente, pela desconstrução do ter e pela construção do ser. Pela inversão dos valores pelos quais se avalia o indivíduo. Pelo entendimento de que a necessidade é mais importante que a capacidade. Para extirpar o fascista que habita em todos nós é preciso criar meios para que a inveja não se estabeleça, via cooperação mútua, vistas ao bem comum, respeito às minorias e pelo acolhimento das diferentes opções políticas. Parece simples. E é. Mas a verdadeira revolução começa dentro do coração. Um coração latino e em constante ebulição. Querendo aquilo que avistamos no hemisfério acima. Parece simples, mas não será. E urge colocar em prática este processo de “desinvejação”. Afinal, não será com ódio que vamos gestar o País que dará a todos igualdade para ser o que se é sem desejar o que nos é absolutamente desnecessário.

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RACHEL CRESCENTI

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