Pés que falam dizem melhor

Pés que falam dizem melhor

 

A gente fala com a boca. É verdade. Mas ela só diz o que queremos dizer. E, venhamos e convenhamos, o que queremos falar não é algo que se deva prezar tanto.  Ao contrário, em alguns casos merecia bem um auto freio moral. Afinal, não passa da verbalização de nosso ego, que há muito deixou de dar ouvidos para o nosso id, e, sinceramente, na maioria das vezes fala, fala e não diz nada que valha a pena.

Mas o que podemos dizer, isto sim vale esta prosa.

E não se engane achando que aqui vai uma ode à democracia e à liberdade de expressão. Redondamente enganado pelos olhos o leitor estará se achar que é sobre isso que versa esta reflexão.

Aqui, o verbo podemos está mesmo no sentido de nos ser permitido. Ou seja, o que podemos falar porque nos é próprio e legítimo dizer.

E, o poder de poder, quem nos dá mesmo são nossos pés.

 

Dois ossos calcâneos, dois cuboides e vinte metatarsos com suas respectivas falanges são o que nos colocam de pés e consciência fincados no chão. Mais valiosos que uma língua afiada, mais sensatos que uma mente abarrotada de informações bagunçadas pelas influências nefastas que pairam no ar da contemporaneidade.

Dito isto está posto que, de onde viemos e onde estamos é o que nos permite de fato a fala precisa, doída, forjada na realidade, vivida, presenciada, suada e desperta.

A postos, de pés em alerta, falamos não o que queremos, mas o que o lugar onde estamos nos permite dizer com a propriedade que nos é dada para a fala.

O problema é que deste lugar, indefinido, invisível, volátil e progressista que menos nos propomos a falar. De onde mais nos esquivamos de estar. Um ledo engano, pois se cada um falasse mais do lugar onde está, mais ouvidos todos seríamos e melhor compreendidos quem mais precisa estaria.

 

Verbalizar apenas o que queremos passaria então a ser o que de fato já é e, muitas vezes, nem percebemos. Uma tonterice. Um ruído aborrecedor e entediante. Uma pequenez envergonhante.

Já falar de onde estamos nos permitiria dizer aquilo que nos cabe. E que provavelmente cabe ao outro e, assim, cabendo a muitos e a tantos, de tamanho perfeito estaria para o mundo que (este sim) queremos e, também, podemos ter.

 

Nossas palavras, verbalizadas então por meio de nossos pés, seriam sementes pegadas, tanto porque deixariam marcas por onde passassem, quanto porque estariam pegas ao solo, prontas para germinarem e gerarem frutos.

E como no caminho dos frutos há sempre a precursão das floradas, poderemos então dizer o que queremos e, ainda assim, ninguém poderá nos dizer que, caminhando, não falamos das flores.

 

Autor:
Rachel Crescenti é jornalista formada pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e possui especialização em Comunicação em Políticas Públicas Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trabalha com Comunicação Pública e Marketing Político e de Campanhas Eleitorais desde 2006.

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