Que me importa se Letícia e Denise realmente existem?

(Crônica baseada em fatos reais)

Eu pessoalmente não gosto de postar sobre quando ajudo alguém! Na maioria das vezes eu não me sinto bem em ter algum ganho ao ajudar o próximo! Mas neste relato, meu objetivo é tentar tocar quem o lê com uma reflexão profunda, como a que tive hoje pela manhã. Estava aqui na quarentena e precisei sair para comprar alimento na padaria. Quase sempre vou de carro, mas hoje, por algum motivo que não chamo de acaso, decidi ir a pé! O dia está propício: temperatura amena, sol leve, céu azul, havia dormido bem e acordei disposto, enfim, vários fatores me fizeram ir a pé.

Chegando na padaria, escolhi o que precisava e, na fila do caixa, aguardava a 1,5 m da senhora de idade que estava à minha frente. Quando chegou minha vez o senhor de idade que acabara de pagar suas compras aguardou a senhora. Não sei porque eles passaram em caixas separados. Para mim, eles pareciam um casal. Puro achismo meu!

Ao saírem ele esqueceu a sacola e eu avisei. Ela voltou e pegou para ele. Paguei minha compra e saí. Também não ao acaso, decido a voltar pela calçada do lado oposto ao que tinha vindo. A poucos metros da padaria fui abordado por um homem que deve ter minha idade, mas cujo corpo provavelmente foi mais desgastado pela vida e, por isso, parecia mais velho.

Ele e eu trocamos o seguinte diálogo:

– Bom dia.

– Bom dia.

– Posso falar um minuto com o senhor?

– Pode.

– Eu queria lhe pedir uma coisa.

– Eu não tenho dinheiro.

– Não é dinheiro. É ajuda.

– Com o quê?

– Hoje é aniversário da minha filha de 7 anos. Você sabe o que é o sanduíche de carne louca?

– Sei.

– Eu preciso de carne moída para fazer para ela.

– Eu não tenho dinheiro.

– Eu queria que você fosse até aquele açougue. Apontou para o local, que era visível de onde estávamos.

– Eu tenho que levar isso para casa. Não tenho tempo. Desculpe.

Segui meu caminho. Havia uns 400 m até chegar ao meu prédio. Pensamentos começaram a brotar na minha cabeça. Sempre que me recuso a ajudar alguém fico me culpando. Coisa para resolver em terapia, pensei. Mas estamos em período de pandemia. Tem muita gente passando necessidade mesmo. Mas ele estava com a pele toda machucada, emagrecido, deve ser um morador de rua, usuário de droga.

E que importa? Quem é você para julgá-lo?

Mas e essa história da filha?! Você já caiu nela antes com outros que ajudou e foi enganado. Essa filha nem deve existir! E ele deve pagar pelo que outros fizeram? E se ela não existir mesmo? E daí? E daí o que ele vai fazer com a carne? Comer? Dar para alguém? O que importa? Dei muitos passos em direção a minha casa e essa discussão na minha cabeça não parava. O que minha mãe faria? Ela ajudaria. Sem dúvida. Ela não julga, né?! Eu sempre deixo esses testes de agir no momento certo passarem. Agora é tarde. E se eu voltar lá? Olho para trás. Não o vejo mais. Ele não deve ter ido longe. Bom, como já foi dito, sempre é tempo de recomeçar. Não custa tentar. Se for para ser,ele estará lá. Dei meia volta. Caminhei. Lá estava ele gesticulando, rogando a alguém num carro estacionado.

Olhei e torci para que a pessoa dentro do carro não o ajudasse. Que desejo mais mesquinho. Eu queria chegar a tempo de ajudá-lo. Ainda sim é mesquinho. A pessoa não o ajudou. Quando ele vira me vê. Eu aceno! Ele comemora!

– Você voltou meu amigo?

– Voltei! Vamos lá?

– Eu só não te dou um abraço e um beijo porque não podemos.

– Você precisa do que no açougue?

– Carne moída.

– Vamos atravessar? Ah! Não dá! O semáforo abriu.

– Qual o seu nome?

– João. E o seu?

– Marcos.

– Ah! É o nome do meu primo! E o nome da sua filha?

Letícia.

– Que nome lindo!

– O que você faz?

– Sou médico.

– Nossa? Deve ser um gênio!

– E você?

– Sou corretor de seguros.

– Vamos. Dá para atravessar agora!

–  Qual a sua especialidade?

– Pele. Dermatologista.

Chegamos ao açougue. Pisei no dispensador de álcool gel e ele também. Perguntei novamente o que queria.

– Um quilo de patinho.

– Inteiro ou moído?

– Inteiro.

Pedi ao atendente. Enquanto ele preparava, falamos amenidades.Ele preparou e pesou 1,4 kg. – Tá bom?

– Não! 1 kg.

– Pronto!

– Obrigado!

Pagamos. Saímos e Marcos novamente me agradeceu.

– Dê feliz aniversário à Letícia.

Ele perguntou:

– João, você acredita na lei do retorno?

Me veio um pensamento como um raio do subconsciente: eu fiz isso pensando na lei do retorno. Não foi altruísmo puro e verdadeiro. Respondi: “Sim. Acredito“.

– Eu vou falar para a mãe dela que foi meu amigo João quem me deu a carne.

– Prepare a carne bem gostosa para ela.

– A Denise vai fazer cozida com azeitonas pretas.

– Ah, vai ficar deliciosa.

– João. Eu te amo.

– Eu também te amo. Cuide-se e cuide de sua filha.

Voltando novamente para meu prédio refleti. Que me importa se Letícia e Denise existem? Nada disso importa! O que importa foi o que aprendi e tudo de mais valioso que ganhei nesta manhã. Troquei 1 kg de patinho por aprendizados que não têm preço. Infelizmente, ainda fica o pensamento. Se ganhei algo em troca e se acredito na lei do retorno? Não. é altruísmo verdadeiro e puro. Ainda preciso aprender a conquistá-lo de forma efetiva e verdadeira.

Autor: João Paulo Junqueira Médico dermatologista, atua em São Paulo, capital, e São José dos Campos, em consultório particular e no Hospital Sírio-Libanês. Produz conteúdos sobre saúde, dermatologia e arte para seu canal do Youtube e Instagram. Ama a arte e gosta de aplicar na medicina e na vida a sensibilidade que ela no ensina.

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