PREGUIÇA, PECADO CAPITAL E CAPITALISMO

Dos sete pecados capitais, a preguiça é um dos que deveria ser tirado da lista dos defeitos e passar a figurar no rol das virtudes. Quando a preguiça foi condenada pelo papa Gregório Magno, no século VI, ao lado da gula, ganância, luxúria, ira, inveja e da soberba, mal sabia Vossa Santidade que muitos séculos depois surgiriam verdadeiros defensores deste pecado capital que passou a ser chamado também de ócio para ficar mais moderno.

A demonização da preguiça partiu da autoridade máxima da Igreja Católica e encontrou terreno fértil na aurora do capitalismo, no século XV, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Esse controle e apropriação do tempo do indivíduo pelo capitalismo faz todo sentido num sistema em que tudo pode ser negociado, observando que a palavra “negócio” vem do latimnegotium , que significa “ausência de folga”. As pessoas vendem seus tempos e junto com eles o convívio familiar e entre amigos, o entretenimento, o lazer e tudo o que da cor à vida.

Mas até chegar aqui, quando quase nem se fala mais em pecados capitais, a preguiça foi açoitada a ponto de o cidadão sentir vergonha de tirar aquele cochilo inocente depois do almoço ou de ficar um tempo do dia sem fazer nada mesmo. Mas esse “ficar sem fazer nada mesmo” precisa ser relativizado, porque a cabeça não para e, dizem alguns defensores da famigerada preguiça, que é quando se dão os insights mais criativos (aquela clareza na mente, uma iluminação).

Não são poucos os exemplos de pessoas que deixaram criações, obras de arte, descobertas e estudos que são verdadeiros legados para as gerações que as sucederam. A pintora mexicana Frida Kahlo quando criança contraiu poliomielite, se recuperou, mas sofreu um acidente na adolescência, o que a fez passar a maior parte de sua vida acamada. Afora a adversidade que a impediu de dar passos no chão, Frida teve tempo para criar e encantar o mundo com sua obra. “Pés, para que os quero, se tenho asas para voar” é uma de suas frases mais célebres. E o que seria da humanidade sem a descoberta do pai da ciência moderna? Isaac Newton, enquanto fazia nada no campo, teve tempo para observar as frutas caindo das macieiras. Num estalo, numa iluminação repentina, deve ter se perguntado: por que as maças caem para baixo? Tal como o enigma da Esfinge de Tebas (Tebas era uma cidade da Grécia antiga), foi lançado a Newton o “decifra-me ou te devoro”. Newton decifrou. Pronto! Nascia ali a Teoria da Gravidade.

Entra século, sai século, entram novas tecnologia, saem as obsoletas. A palavra é i-no-va-ção. O significado sabemos bem, muitas vezes ela se traduz em tempo livre cada vez mais sequestrado e o indivíduo cada vez mais full time. O paradoxal é que as tecnologias são criações humanas para facilitar a vida, mas se voltam contra seus criadores. Como serpentes, elas sempre vêm com o veneno e com o antídoto; são ao mesmo tempo a enfermidade e a cura. Na era de tanta facilidade, agilidade e super valorização dos bens materiais “indispensáveis”, ganhamos de brinde uma explosão de pessoas depressivas, sofrendo de insônia, ansiedade, síndrome do pânico e outras doenças devastadoras da alma.

O ócio precisa ser entendido como meio para a melhoria do conjunto de ações cotidianas. Isso não significa deitar-se, largar tudo de lado e ficar esperando a ideia ou a vontade para produzir chegarem. O ócio é parte disso tudo, diz respeito também à salubridade da matéria e do espírito. Trata-se da necessidade do tempo para meditar, refletir sobre o que pode ser e, fundamentalmente, observar o que está ao redor e o que é íntimo de cada um, é mergulhar em si mesmo para conhecer-se. É também descansar, por que não?

Enquanto o trabalho impõe a aceleração, o capitalismo faz o que é de sua natureza: cria a necessidade de objetos cada vez mais “indispensáveis” e a urgência cada vez maior das pessoas venderem seus tempos, ganharem dinheiro e comprarem tais objetos. Deste ponto de vista, a prática o ócio é um ato revolucionário.

O filósofo Michel Foucault, ao estudar como a Igreja e o capitalismo se apropriaram do tempo alheio como forma de dominação, foi certeiro em sua afirmação de que “trata-se de não deixar qualquer tempo livre aos indivíduos, pois seria por ele que as tentações, desordens e a queda de produtividade poderiam vir a perturbar o bom andamento das coisas”. Complementando Foucault, com ideia que diz muito sobre a contribuição de legados como os de Frida Kahlo, Isaac Newton e de tantos outros que “perturbaram a ordem”, o arremate fica por conta de outro filósofo, Albert Camus, que categorizou: “são os ociosos que transformam o mundo, porque os outros não têm tempo”.

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SILENE SANTOS

Jornalista formada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP), possui pós-graduação em Globalização e Cultura pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Possui 23 anos de experiência em Comunicação Social e atua no Atendimento às contas públicas da Área Comunicação.

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