Dia desses peguei-me pensando numericamente sobre a vida. Talvez, efeito colateral dos finais de ano, em que tantas “balanças” são acionadas por demasiadas pessoas… Avaliei hoje que, possivelmente, me restem menos anos no “balaio da vida” do que aqueles que já vivi até aqui. A alcunha de meia idade não se criou à toa.
Perceptivelmente, não me sinto assim tão em metades, de todo modo. Lembro-me risonha do genuíno espanto, láaa nos idos dos meus vinte e tantos anos, ao ser, pela primeira vez, chamada de “senhora”. Nem acionei o automático “Senhora está no céu…”, dado o impacto. Consigo ainda enxergar o rostinho do empacotador do mercado, autor da proeza. Misteriosa nossa memória, caprichosamente marcando alguns detalhes em detrimento de tantas outras emoções vividas! Mal suspeitava que ainda viria o “tia” da criança num ônibus lotado, e tantos outros “senhoras” e “tias” de lá pra cá, já tão familiares!
Balanças, números, anos… creio que em pouquíssimos momentos seja justificável pensar-se em vidas assim, ao sabor numérico. Talvez, aquela nota que marcou uma defesa de trabalho importante… ou o valor pago na primeira conquista, ou que tal o ano do primeiro beijo? A idade dos filhos? A quantidade de viagens, de lugares, de amigos? Se formos analisar, há uma infinidade de números significativos em todas as existências. Mas é provável que tenhamos dificuldade em nos lembrarmos da maioria deles. Possivelmente, a quantidade de visitas turísticas, por exemplo, precisaria de uma “colinha”, uma consulta lá ou cá, em algum ou vários papéis, conversas, álbuns espalhados por aí, para ser precisada. Porém, provavelmente, cada “investigação” dessas traria sorrisos, lembranças gostosas, engraçadas, penosas, sensações logo ali, submersas numa camada de cotidiano que tem essa mania besta de suplantar, com correrias e preocupações, toda essa felicidade que na realidade nos pertence, ninguém tasca, vivemos primeiro. Nem os prazos apertados. Nem os boletos. Nem as inseguranças. Pois tudo isso faz parte da bendita balança. São os ônus e os bônus. São as doses de realidade que nos garantem reconhecermos o que é alto e o que é baixo, o que é felicidade e o que é o nem tanto.
Há uma passagem bastante interessante no filme Matrix (The Matrix, 1999). Nessa produção de ficção científica, num mundo dominado por máquinas, os seres humanos têm seus corpos mantidos em animação suspensa em espécies de cápsulas que lhes sugam a energia vital, como se fossem plantações de “baterias” para seus captores. Para que os “humanos-pilhas” não sucumbam rapidamente, suas mentes são manipuladas em uma realidade alternativa, uma “vida real no mundo” que, de fato, não existe. Numa conversa da “mente coletiva máquina” com um dos personagens que escapou dessa sina, a máquina diz que as primeiras simulações de realidade falharam retumbantemente, e milhares de “safras humanas” foram perdidas. E por quê? Por terem inserido os cativos numa realidade “branda demais, com felicidade e facilidades demais”. Segundo as máquinas, as mentes humanas sucumbiram a esse cenário sem pedregulhos, sem entraves, sem animosidades… sem sentido.
Não sei exatamente se o que move a vida é a dificuldade. Para mim, certamente os sorrisos, os grandes amores, os dias de sol brando e céu límpido, estão logo ali, coladinhos aos sonhos de qualquer existência. Porém, tenho plena consciência de que seria difícil captar a extensão da felicidade de um abraço afetuoso não fossem as pedradas do caminho. Talvez, menos tempo deva ser gasto em cálculos e raciocínios sobre essa “fórmula”, e mais tempo em contemplação da imensidão que é viver. Viva. Viva!
Texto por: Lucille Veschi
Jornalista e professora universitária, graduada pela Universidade Estadual Paulista, mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, e mãe do Miguel. Uma eterna apaixonada pela comunicação, pelo cheiro dos livros, pela natureza e pelos animais. Atua no Atendimento a contas públicas na Área Comunicação.
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