Já dizia Dorival Caymmi, “quem não gosta de samba, bom sujeito não é. É ruim da cabeça ou doente do pé”. Mal sabia ele que a ode Samba da Minha Terra tanto sentido faria 80 anos depois. Pior. Que os maus sujeitos se intitulariam cidadãos de bens e ainda deixariam sem chão os pés e mentes sãs, que caminham pela liberdade, pelo justo e pelo belo do mundo.
Por isso, neste Carnaval, que não se espere uma sucessão de Ora ie iê ô mamãe Oxum, muito embora um olhar materno tão bem faria à nação. O maior show da terra não bradará à majestade Okê Arô Oxóssi, e nem cantará Kaô Kabecilê Xangô para ampliar sua visão sobre a realidade deste Brasil.
Ogum Yê mostrou que é hora de cortar cabeças tacanhas e intolerantes. De iluminar pensamentos de forma certeira, como um raio, Eparrei Iansã. É tempo de colocar o dedo na ferida.
Em pleno 2020, redondo e emblemático, ninguém imaginaria que ainda estaríamos saudando o candomblé e pedindo pelo amor de Deus, pelo amor que há na fé que, já que muitos respeitam o amém, outros bem que poderiam também respeitar o axé.
A festa profana este ano se levanta dos morros, das favelas, das consciências periféricas para lembrar que é a verdade que nos fará livres. Uma festa de rosto negro, sangue índio e corpo de mulher, que os profetas da intolerância buscam ano a ano deslegitimar, sem saber que a esperança brilha mais na escuridão. Mas sorrir é resistir. E resistir é coisa de pele. É coisa de preto.
O Carnaval deste ano, como talvez de nenhum outro, vai sangrar na luta contra a intolerância. Lembrar que o Brasil, compartilhou, viralizou, nem viu e o País inteiro assim sambou, caiu na fake news.
Uma folia que tem a força de quem nunca desiste e traz o olhar das porta-bandeiras além dos pavilhões. Por isso, não esperem um desfile cordato. Ao contrário, ele vem sincopado e carregado, em cada verso e refrão, de muita reflexão. Abraçando a dor de todos e rechaçando os discursos oportunistas, os preconceitos, a ganância e a hipocrisia.
Este ano o morro que vem pro asfalto, não esquece a tristeza. Aproveita seu dia de comunidade e propõe um novo amanhã num canto de liberdade.
Um arrastão colorido clamando aos céus que a chama da maldade se apague. Transformando a dor em alegria de poder mudar o mundo. O Carnaval deste ano é resistência, é negro, é índio, é mulher, é arco, é flecha, é essência. É um desfile que pede paz, mas que é de guerra. Uma aldeia sem partido ou facção. Cantando que não tem bispo, nem se curva a capitão.
Cansou de ser mesmice a folia. Decidiu escancarar o jogo armado, o conto do vigário de gravata que abençoa a mamata e os lobos em pele de cordeiro. Vai chegar na avenida decidido a fazer a maré virar. Sem medo de acreditar. De mostrar que não tem futuro sem partilha e nem Messias de arma na mão.
No picadeiro da ilusão, um novo norte será lançado à sorte. À moda sambista, com alma de artista que vai onde o povo está. No rosto retinto exposto dos foliões, o mais imperfeito, perfeição se tornará. Pra construir um amanhã melhor para a maioria brasileira que é alicerce da esperança. Será, mais que nunca, um samba no compasso de um mutirão de amor, gritando que dignidade não é luxo, nem favor.
Um a um, guetos e tribos vão se revelar. Esquecer a dor desse mundo que é todo deles. Curar a ferida que a história recente escreveu. Mostrar a voz que amordaça a opressão, que embala o irmão, que fala em nome daquela, da batida mais quente, do som da favela.
Um cortejo de resistência em oração, com uma mensagem do bem. Nas trilhas da vida, é desbravador, um destino traçado, vencedor. Crendo no milagre, em sagrados valores, o Carnaval este ano é a vela que acende e a dor que se apaga. É mão que afaga e se torna corrente. Em romaria a fé lhe guia entre o real e a imaginação.
E que, por mais que existam barreiras, o maior show da terra este ano vem para vencer e lembrar que ninguém está sozinho. E para não deixar esquecer que quando a vida nos ensina, não devemos mais errar.
Por isso, samba Brasil, porque teu samba é uma reza pela força que ele tem. Esquece o mal que te consome. Sorrir é resistir! Não segurem o povo, que o povo é o dono da rua. E o povo canta pra te ver passar e repassar a limpo.
Carnaval, vão te inventar mil pecados, mas eu estou do seu lado e do lado do samba também.
Obs.: Este texto foi escrito combinando inúmeros versos que compõe os sambas que contarão os enredos do Carnaval 2020. Uma licença poética e uma honra dividir com tantos sambistas tão sábias reflexões.