Dora cresceu em uma família de classe média, acostumada a algumas “regalias” típicas do bairro onde viveu. Durante a infância, sua família dividia com a vizinha quatrocentona o andar e também a funcionária, duas vezes por semana no 52 e duas no 53.
Dona Cleide foi trabalhar na casa dela quando Dora tinha uns 11 pra 12 anos. Uma senhora negra, de voz calma e toda doçura do mundo. Foi ela quem explicou para Dora que existiam linhas sociais invisíveis e que as duas sempre estariam de lados opostos.
Dona Cleide não sentava no sofá, não comia primeiro e aceitava o que os patrões ofereciam sempre com muito receio, constrangida por estar atrapalhando a vida dos pais de Dora.
Uma vez Dora questionou porque Dona Cleide usava o banheiro de fora, o cômodo era um amontoado de prateleiras, onde se guardava pano de chão, tábua de passar, vassouras, rodos e também onde ficava a cama do cachorro.
– Não dá para usar esse banheiro, disse Dora.
– Mas é o meu banheiro, respondeu Dona Cleide.
Dona Cleide teve a infância ceifada, com pouco carinho. Perdeu o contato com os pais logo cedo, deixou a casa dos avós quando se casou e teve duas filhas, a primeira aos 17 anos. Quando a família veio para São Paulo, Dona Cleide morava em uma casa menor do que o quarto de Dora.
Despretensiosamente, Dona Cleidemar ensinou a pequena Doralice tantas coisas, sem nunca ter lido Marx ou Gilberto Freyre. Ensinou o que realmente é esse Brasil cruel que muitos se orgulham tanto.
Semana passada estava lendo uma matéria de uma ex-faxineira que vai estrear um programa de TV na Bandeirantes e logo lembrei de Dona Cleide. Se ao menos ela tivesse tido oportunidade de não ser invisível, quem sabe a história não seria outra? Quem sabe o Brasil não seria outro?

Diretor de planejamento estratégico digital da Área Comunicação. Atua a mais de 20 anos no mercado digital, principalmente nas áreas de inovação, data science e novos negócios. Palestrante profissional, professor na PUC-SP, especialista em psicologia comportamental e criador do projeto Mulheres Digitais.